4 de jul. de 2010

SAMBA, UMA DOSE DE JAZZ ÀS VEZES LHE CAI BEM
por adílson júnior e diogo pretto

Eis que a Modernidade se adensa e os excessos se esvaem. Numa nova conjuntura musical que se apresenta em idos dos anos 50, a praia de Ipanema ganha voz e suas ondas passam a musicar o Rio de Janeiro, as paisagens, as belezas, a flor, o amor - de forma leve, bem ‘baixinho’ para não incomodar os vizinhos. O contexto político-social do progresso e da modernidade disseminam o otimismo entre essa cultura musical que difere do samba (de raiz ou canção), a folclórica exaltação brasileira. Assim surge a Bossa Nova mostrando sua melodia despojada, sua harmonia fluida e dialógica, e reconfigurando a estética e a expressão cultural musical brasileira para sempre.

Um dos expoentes do movimento. Sim, um movimento. Afinal, todo o aprumo estético, musicalidade concisa, performances pouco emocionais, ritmo alegre, eufórico, temáticas que aludiam à modernidade e a atmosfera de praticidade que emanava das canções compunham uma ideia, ainda que surgida em apartamentos da Zona Sul, que de certo modo revolucionava a expressão artística da época. Retomando, um dos expoentes foi o melodista Carlos Lyra que, ao lado de João Gilberto, Vinícius de Moraes, Tom Jobim e outros, movimentavam a engrenagem da música do sorriso e da flor. Dentre suas principais composições encontram-se obras emblemáticas da Bossa Nova: "Coisa Mais Linda", "Você e Eu" e "Minha Namorada" - até hoje revisitadas por jovens cantores.

Carlos Lyra se manteve firme na identidade musical atrelada ao movimento bossa-novista. No entanto, o tempo passou, o contexto histórico mudou, a juventude se transformou e as trocas, os embates e os diálogos que caracterizam toda cultura popular fortificou-se. Carlos Lyra cada vez mais envolvido com o teatro e o cinema passou a politizar sua obra no início dos anos 60 e dessa gradual transformação nasceu "Influência do Jazz", um irônico relato sobre o sofrimento do samba.


Influência do Jazz
Pobre samba meu
Foi se misturando se modernizando, e se perdeu
E o rebolado cadê? Não tem mais
Cadê o tal gingado que mexe com a gente?
Coitado do meu samba, mudou de repente
Influência do jazz

Quase que morreu
E acaba morrendo, está quase morrendo, não percebeu
Que o samba balança de um lado pro outro
O jazz é diferente, pra frente pra trás
E o samba meio morto ficou meio torto
Influência do jazz
No afro-cubano, vai complicando
Vai pelo cano, vai
Vai entortando, vai sem descanso
Vai, sai, cai... no balanço!

Pobre samba meu
Volta lá pro morro e pede socorro onde nasceu
Pra não ser um samba com notas demais
Não ser um samba torto pra frente pra trás
Vai ter que se virar pra poder se livrar
Da influência do jazz

De fato, a influência do tal gênero musical norte-americano foi efetivamente incorporada à musicalidade bossanovista; entretanto, a Bossa Nova se constituía como um movimento de caráter experimental; acoplava gêneros variados (o jazz propriamente dito, o erudito, dentre outros) ao samba de maneira criativa e antropofágica. A atribuição de valor positivo a essa troca cultural e musical é fundamental para se entender a Bossa Nova.

As diferenças entre os gêneros e o enaltecimento ao samba "pobre" e "coitado" vítima desses estrangeirismos musicais são conjugadas brilhantemente pelo Carlos Lyra no que diz respeito ao estilo estético herdado da própria Bossa Nova. A ironia é patente quando o compositor diz que, devido a hibridação com o estilo norte-americano em questão, o samba tipicamente brasileiro estaria desaparecendo na sua essência de maneira que tal situação só não se tornaria irreversível caso o samba regressasse às suas origens – o morro. Além disso, a ironia ganha mais força quando a própria musicalidade da crítica ao jazz se materializa numa música nitidamente jazzística que perde as características do samba como o batuque, a percussão, a mistura.

Por fim, é recorrente que alguns críticos e musicistas, principalmente na época do surgimento da Bossa Nova, percebessem o samba num invólucro místico, original e autêntico, o que verdadeiramente representa e identifica nossa nação. No entanto, as trocas, o diálogo e a experimentação a que se propunha o movimento é inevitável, pois faz parte de um processo de transformação cultural. Ademais, a crítica que via a estética musical do sorriso e da flor como alienada negligenciava o espírito otimista que permeava a sociedade no contexto em que se deu seu surgimento, isto é, a bossa nova reiterava a euforia oriunda da ideologia política de modernização do país. O que caracteriza a bossa nova não é a morte do samba, as notas demais ou o samba meio torto, mas as apropriações e a riqueza estética, mesmo que munidas de cortes aos excessos musicais, cuja matéria-prima sempre foi e sempre será o nosso eterno samba.

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